03 agosto, 2014

Fern(anda)



         “Onde você tem paixão?” Foi a pergunta que Fernanda me fizera depois de ter lido Humano, Demasiado Humano, de Nietzsche. Não soube respondê-la com prontidão, queria ter sido imediato, mas me perdi em mil pensamentos, seus lábios em câmera lenta me prendiam a atenção, o fascínio estava em olhá-la prendendo o cabelo, fazendo um coque, ao tocar o cabelo e esticá-lo para o nó, era como se encostasse a mim, até a segunda pergunta exclamada –“Ei? Responde, menino!” A sonoridade da palavra menino, se repetia na minha mente como vento frio que arrepia: Menino...menino...menin..me...deixei me levar como assobio e respondi:

           - “Nas pessoas livres”.

        No exato momento da resposta, Fernanda molhou seus lábios com a própria língua, piscou os olhos duas vezes, tudo isso em questão de segundos, que para mim foram eternos. 
No silêncio de um minuto seu olhar se perdeu como se fosse dizer alguma coisa e disse: 
          - “ Pensei que fosse livre, mas não sou, os apaixonados nunca são.” 
         Pude penetrar em cada palavra dita, o instante durou tempo suficiente para ver Fernanda mudar do estado líquido para o gasoso. Quando me perguntou onde tinha paixão estava alegre, uma saliência inocente, curiosa e espevitada pela resposta, líquida!!! Como água, como mar que afunda os desatentos mortais. Depois que a respondi se perdeu no ar, borbulhava numa tristeza incompreensível. Fernanda me dera as costas e por trás dela quis desmanchar o coque, soltar seu cabelo , sentir seu perfume, lógico que não fiz nada disso, mas quando dei por mim, estava muito próximo de seu corpo, toquei a cintura, Fernanda suspirou profundamente, uma respiração ofegante que me desnorteou, fui para frente dela, olhei fixadamente em seus olhos e na velocidade dos que só os apaixonados programam seus encontros despejei sobre Fernanda o que pensava: “ Não há motivos para melancolia, os apaixonados mesmo não sendo livres (porque são presos a todos os sentimentos humanos), encontram assim a sua própria liberdade...a liberdade é o ato de sentir, e nisso você é livre sim”. 
        Um conforto pairou a cena. Fernanda deixou rolar em seu rosto uma única lágrima. Uma única lágrima... Mal sabia eu que seria a nossa última conversa. Fernanda beijou-me como se fosse sufocar a vida, senti um gosto de despedida, mas não quis tocar no assunto. Aproveitei o caos. Transbordamos.
         Acontece que toda noite encontro com Fernanda nos devaneios dos meus sonhos. Acordo, preparo o café, leio mais de Nietzsche, vou à estação na espera de alguém que não vai chegar, sento no banco, penso na vida enquanto fumo um cigarro qualquer, faz exatamente 23 anos o mesmo ritual, faz 23 anos o diálogo sobre paixão, liberdade e amor. Faz 23 saudades. O que me fere e tortura, também me cura. Confesso que amei Fernanda, mulher com o dobro da minha experiência, que hoje só me visita às madrugadas, em sonhos, pesadelos, quando quer... sempre livre, sempre linda, sempre viva...Fernanda vive, Fernanda anda... pelo apartamento, pelo pensamento, pelo mundo, pela vida amarga dos amantes livres. Só nós fomos felizes.

Paolla Souza